quinta-feira, 20 de novembro de 2025

CANTO V

 Não-respostas


Quanto ao não dito, nada a dizer. É sua escolha, e só sua, por mais acintosa que uma escolha possa lhe parecer. Respeito-a tanto quanto as consequências advindas dela. Ademais, sempre achei, como o Tio Ben, que com "grandes poderes vêm grandes responsabilidades" (ave Stan Lee). Mas desprezo, como sabe, a isenção de culpa por dedução tautológica. Considero mesmo uma falha lógica (redutora) evocar a panaceia do big bang (ou da razão prática de Bourdieu) para eximir-nos das consequências ou atenuar a frustração de nossos tropeços. Sempre me remete à tese central do síndico da MPB: "tudo é tudo e nada é nada". Concluindo, se para ti a experiência lato sensu é limitada pela razão, quem sou eu para demovê-lo. Na verdade, subscrevo: o outro é o outro. Ponto! Mas incorreria em outro erro lógico se exigisse alteridade considerando o conceito de razão da tradição racionalista clássica que busca definir a razão de forma lógica, formal e universal, separada das contingências sociais ou emocionais, o mesmo que a definição de Bourdieu e sua 'razão prática', contextualizada no habitus. A mistura de conceitos ai seria como confundir push e puxe (ou alhos com bugalhos) sem notar que são "falsos cognatos".  

Com efeito, antes de adentrar minhas não-respostas, considero imperativo (r)estabelecer conceitos e normas que se acordadas garantiriam a coerência. Sublinho que faço isso não na ânsia de verter um adversário, mas ao contrário, na sincera intenção de estabelecer critérios para que a dialética flua sem a gravitação de interpretações fundamentadas em lastros e parâmetros diferentes, o que ao fim e ao cabo, poderiam levar nossa interlocução à algo parecido a um pseudo-diálogo entre dois ET´s de habitus diferentes argumentando em línguas completamente incompreensíveis um do outro. Ambos falemos da mesma coisa, considerando os mesmos parâmetros para uma argumentação lógica através de Premissas claras e aceitáveis, Raciocínio (dedutivo ou indutivo) válido e a supressão de Falácias (erros lógicos, como o Ad Hominem – atacar a pessoa em vez do argumento). Portanto, rótulos como ocidental, eurocêntrico, americano, branco, rico, colonizado, utilizados no introito, nada mais seriam que mera erística para invalidar o oponente de saída. Seria isso picaretagem ou mallacagem intelectual? Confesso: NÃO sei... E antes que se irrite e responda com o fígado, alteridade, pequeno Baudelaire. Por fim, conclamo-o, claudicante ou não, a seguirmos os elementos estruturais e metodológicos do debate filosófico, já que esse é e sempre foi o objetivo primordial do Canto Torto, ainda que às vezes corte feito faca a carne de um de nós. Concordas? 
Se sim... "no mais... geraes..."

Começo então pelo início (veja, não sou acadêmico, a redundância me perseguirá nesse CANTO):

(i) Debate (ou dialética entre dois canalhas; ou ainda maiêutica provinciana): intercâmbio intelectual e rigoroso que envolve o confronto e a discussão de argumentos coerentes e embasados (valem todas as referências mas evitaria argumentos de autoridade. A autoridade aqui deve vir dos canalhas, preferencialmente, não de outrem).

    (i.1) Foco na questão fundamental, qual seja:

        (i.1.1) Racionalidade ou irracionalismo - limites da abordagem definidos pelo cerne do debate: 

        - Devemos ser ou não racionais, e até onde tal racionalidade pautaria nossa conduta? Premissa básica: definir razão em comum acordo.

Não-resposta 1:
Enquanto eu falava da 'razão genérica e lógica', descobri pelo CANTO IV que referia-se às 'razões práticas', no contexto do Habitus de Bourdieu. 

Não podia mesmo dar certo, a menos que tivéssemos definido parâmetros e conceitos antecipadamente, em comum acordo, como tento fazer agora. 

Não-resposta 2:
By the way, Russell quando escreveu a citação referenciada, nos Ensaios Impopulares de 1950, falava da razão como Universal e Lógica,  não a razão do Habitus de Bourdieu. Sendo ele um dos maiores expoentes do Racionalismo Clássico e da Filosofia Analítica, utilizava a razão como um padrão normativo para o pensamento e a ação e embora seja frequentemente classificado como um Empirista Lógico ou um dos fundadores da Filosofia Analítica (junto com G. E. Moore e Ludwig Wittgenstein), sua abordagem está profundamente enraizada e alinhada com os princípios do racionalismo clássico no que diz respeito à primazia da razão e da lógica. Dai vem minha abordagem, como discípulo (pedante e petulante, sim). Portanto, sua referência, longe de justificar algo, aponta mais para uma ação tresloucada ao colar fora de contexto um trecho que embase sua tese descartando toda a obra e intenção autor, do CONDE, NOBRE, FILÓSOFO, RICO (e branco, sim). Catso... que diabos foi isso??? E pra que tantos rótulos??? E ai respondo pela primeira vez a pergunta "É mais ou menos por aí, deu para acompanhar?": não, nada! Perdão, não sou acadêmico nem cultuo os mesmos oráculos. Mas sigamos.

Antes, porém, veio Motor Mania. Clássico e nostálgico, e para mim, genial. De novo, eu falando da razão universal, defendendo a primazia da razão e da lógica (a despeito da jornada do sapiens de Yuval contradizer frontalmente Aristóteles e embasar a ironia de Russell)  como a única saída (ainda que não sejamos capazes de atingi-la - ainda), e você usando um exemplo da razão prática de Bourdieu. Ai voltamos ao que disse no segundo parágrafo e conclamo-o mais uma vez. 
Já a alusão ao Pateta, gostei. Acho-me mesmo um goofy no mais das vezes. 
Sem mais.

P.S. o intelectual de vulto (sem aspas) não foi Jack Kinney, que atuou como produtor, mas Dick Kinney, seu irmão e roteirista, que escreveu o cartoon junto com Milt Schafer. Dê a Cesar(es) o que é de Cesar(es).

Não-resposta 3:
Depois disso, vêm os parágrafos com suas digressões sobre a razão(a sua) e o infanticídio, ocidentalismo, a escravidão pautada por ciência. O que??? Fala você do chamado Racismo Científico e das pseudociências craniometria, frenologia, eugenia? Se sim, mistura ciência com pseudociência (de fins politico-ideológicos) e pior, coloca o caro cartesiano aqui como um seguidor cego e obtuso só de fórmulas e equações. Se não, trilhas o caminho da temerária moria, ou de Lucy in the sky with diamond - pobre Darwin, arrastado também para a confusão. Mas doeu, viu? Depois piora, compara de novo "minha razão" (a genérica, universal) com a sua (a razão prática de Bourdieu) para nivelar a morte de bebês no nascimento com portas trancadas à noite, assassinatos de esposas, brigas de trânsito, o falo do outro e o civilizado do selvagem, usando e abusando do estratagema erístico da 'extensão indevida'. Fala sério, pequeno Baudelaire... assim eu choro.
Reli meu texto e constatei:
[Pois bem: universalismo ou relativismo cultural? Em se tratando de determinados valores, como por exemplo a valorização absoluta da vida individual, especialmente a de um ser indefeso como a de um recém-nascido, ave ocidente! Não elaboro o porquê de minha opinião - confesso que cega -, talvez por ignorância ou simplesmente por empatia radical. Tenho filhos.]. Onde, santo Deus, extendi minha convicção para a sociedade dita civilizada ou a dita selvagem? Good grief... doeu de novo. Fui até cauteloso ao dizer que não elaboraria minha opinião, já que cega. Em resposta, ainda recebi o contraponto do pensamento ocidental com a felicidade, Freud e um trem descarrilado de inferências distantes do tema inicial (razão). Ai o debate perde-se no emaranhado das leituras e inferências acadêmicas, nas citações dispersas sem um eixo condutor lógico (já que eu ainda permanecia perdido no tema razão ou o irracionalismo), salpicadas talvez por claudicância boêmia, amorosa, hedonista ou simplesmente pela rotina sem graça do homo faber, caríssimo Baudelaire. Pululam a história teleológica, a razão ocidental produzindo progresso e tecnologias que terminam por oprimir e escravizar a África, necropolítica, Mbembe. Dai para o progresso científico pautado pela razão ocidental e a geração dos parâmetros da arguição cientifica que "extrapolam as exatas e ganham, primeiro, as ciências naturais, depois as sociais. Darwin dá sustentação à escravidão, à superioridade ariana, ao Terceiro Reich" foi um pulo. "A tecnologia das fábricas é aplicada aos Campos de Extermínio e, desde então, mata-se com eficiência industrial (não que os europeus não tivessem tais práticas antes de 1939)" uma dedução inevitável.  Lembro-me, porém, da anedota do corno que se depara com a traição da mulher no sofá da sala e atribui a culpa ao sofá. Hiroshima e Nagasaki não foi culpa da quebra do átomo. Precisamos pautar o debate sobre as mesmas premissas e conceitos, senão correremos o risco de entrar em briga de bêbado, pela arrogância e similaridades de personalidade que dizem partilhamos (e eu concordo).

Não-resposta 4:
O restante, embora instigante e fio condutor para pesquisas e leituras desse cartesiano leigo e insípido aqui, também extrapola em muito o tema pelo qual engatamos o debate. Para minhas subsequentes não-respostas, não prementes e embasadas pelo que disse quando justificou "só estou tateando e pinçando ideias ao acaso. De que serve concluir, não é mesmo?", solicito mais tempo para vislumbrar o eixo lógico (ou não, diria Caetano) que me conduza. Afinal, ao citar Sidarta ou o estoicismo (embora o cerne seja a resiliência, independente de qual vetor a professou primeiro), me confundi. Não estávamos a discordar de algo? Sua dicotomia e digressões pinçadas aqui, ainda que só no tateio, nem sempre esclarecem, ao contrário, preenchem de brumas o que poderia ser um embate objetivo. Mas continuo…

    (i.2) Argumentação Rigorosa

        (i.2.1) A base do debate é a argumentação lógica. Não basta apenas declarar uma opinião; é preciso justificá-la por meio de:

                - Premissas claras e aceitáveis.
                - Raciocínio (dedutivo ou indutivo) válido.
                - Evitar Falácias (erros lógicos)

    (i.3) Diálogo e Dialética

        (i.3.1) o debate filosófico está intrinsecamente ligado à Dialética (o método de Sócrates), que envolve:

                - Tese (uma afirmação inicial).
                - Antítese (uma contestação ou argumento oposto).
            - Síntese (uma nova compreensão que incorpora o melhor de ambos os lados, ou pelo menos esclarece a falha de um deles).

Por fim, 

    (i.4) Coerência e clareza (e aqui concisão e a palo seco definiriam o mantra)

            (i.4.1) Os participantes devem buscar clareza conceitual (definir os termos usados) e coerência interna (garantir que suas posições não se contradigam). Se um termo é ambíguo, o debate deve começar por defini-lo.

Esse último, presumo, poderia ser-nos especialmente útil.


Assim, sugiro um reset antes de continuarmos com os cantos. Embora super estimulantes, e no meu caso, o rotor para pesquisas e leituras que há tempos pensei não ser mais capaz de abordar, necessito de tempo para alcançá-lo na teoria (não sou acadêmico), além do tempo adicional para análise e formalização de minha própria opinião. 

Notei, porém - e creio que em tempo -, instrumentos desafinados, e ai o melhor é usar um diapasão. Eis ai minha sugestão.


terça-feira, 18 de novembro de 2025

CANTO IV


Estarei com Razão?

 

Eita cantilena torta, canto engasgado, estrada atravessada... Eis-me novamente por aqui e, para variar, totalmente torto. Bom, de médico e de torto, todo mundo tem um pouco, não é assim? Não sei você, mas no que me diz respeito, tenho andando mesmo claudicante − é a vida e os seus (des)caminhos −. E você perguntará: há problema na claudicância? Respondo: não para mim..., no entanto, para lógica da produção, dos prazos, dos trabalhos e das responsabilidades da vida adulta, há sim! No contexto do homo faber, não combinam – e tampouco comportam – andanças claudicantes. Quer dizer, no regime do tempo da produção, pouco há espaço para andaduras “sem rumo”, para o flanar sem destino prévio, para o pensar por pensar... sem que, com isso, chegue-se a qualquer que seja a conclusão (pensar por quê? Melhor agir, mais adequado fazer. Pensamento por ele mesmo, não vale muita coisa). No regime da produção, portanto, o que é forçoso são as respostas; para além destas, urgem as decisões, são prementes os caminhos firmes e deliberados. Mas o que é que eu tenho com isso? Ora, que se dane! A vida é minha e quem manda nessa porra aqui, sou eu! Faço com o meu tempo finito o que melhor me aprouver... no fim das contas, já nasci torto.     

 

Já tendo dito o não dito (atentado para o estado de instabilidade emocional deste que agora rabisca), interpelemos a questão da razão; especialmente, da razão ocidental. Para tanto, começaremos com um intelectual de vulto. Branco (sim), porém, ao menos, não é europeu (Americano; Ave, american way of life):

[[O automóvel nas mãos do homem comum já está beirando as margens da extinção. Na verdade, o homem comum é uma criatura de hábitos estranhos e peculiares. Tomemos o senhor Walker como exemplo. O senhor Walker mora num bairro tranquilo, de pessoas decentes. Ele é o típico homem comum, considerado um bom cidadão e de inteligência razoável. É um homem gentil, amável, pontual e honesto. O Sr. Walker não machucaria uma mosca, tampouco uma formiga. Ele acredita em: viva e deixe viver. O Sr. Walker possui um automóvel e se considera um bom motorista. Mas, quando ele pega no volante, acontece um fenômeno estranho: o Sr. Walker se deixa levar pela forte sensação de poder. Sua personalidade muda completamente, e de repente, ele se transforma em um mostro incontrolável, um motorista diabólico. O Sr. Walker é agora o Sr. Wheeler, o motorista.]]

− Trecho inicial da animação: MOTOR MANIA; 1950; Jack Kinney; Walt Disney Productions.


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Direto ao ponto e sem rodeios? Pois bem, coisa positiva do blog: sua estrutura força uma sintetização na minha escrita. Faz com que, de certo modo, eu seja impelido a largar o hábito acadêmico de tudo referenciar; de tudo sustentar com base em algum argumento de autoridade (geralmente de um homem, geralmente europeu, geralmente, branco). A despeito disso, não posso deixar de todo o cacoete. Como comentado no meu canto passado, sou jovem e burro, sendo necessário buscar substância em pensadores alheios. Por isso, fiquemos com Jack Kinney e sua animação com o personagem Pateta (busque-a, se quiser. Salvo engano, está no streaming da Disney).  

 

No meu ponto de vista, Kinney demostrou de modo magistral o alcance da pretensa razão. Em outras palavras, arrotamos arrogância (eu, inclusive. Ora, sou professor de algo estritamente europeu) a fim de dizer das maravilhas que o pensamento racional foi capaz de constituir (um automóvel, por exemplo); mas basta entrar em um carro para ver o quanto dura essa razão; o quanto são racionais os tais Primatas Falantes. Cheios de si (europeus então, nem me fale), gritam aos quatro cantos sua “evolução”, seu conhecimento. Tamanha a primazia e tanto ardor a favor da história do pensamento ocidental... e a coisa não se sustenta a um bater de portas de um automóvel. Com efeito, se não basta o americano, vamos então ao cerne europeu; País de Gales. Eu, jovem e burro; ele, CONDE, NOBRE, FILÓSOFO, RICO (e branco, sim). Fala para mim, vamos, Conde. Diz o que eu não sou capaz; elabora o que a minha inteligência (ainda) não permite, pega sua experiência e ensine-me, Conde Russell:

[[“O homem é um animal racional — ou pelo menos foi o que me disseram. Ao longo de uma vida longa, procurei diligentemente por evidências que confirmassem essa afirmação, mas, até agora, não tive a sorte de encontrar nenhuma.”]]

− An Outline of Intellectual Rubbish; Bertrand Russell

 

Eu e meu gosto por citar europeus brancos. Lembro-me de um professor (genial e também branco), hoje responsável pela disciplina de História da África na Universidade Federal Fluminense, chamando-me de Intelectual Colonizado (saudades, cara; Ave Prof. Malacco). O mesmo professor costumava repetir que o mal do europeu é viver se procurando pelo mundo (não vou alongar aqui... quem sabe, essa coisa de “se procurar pelo mundo” fique para um próximo canto). Agora, com relação a tal frase do querido Aristóteles: O HOMEM É UM ANIMAL RACIONAL, saibam: adoro trabalhar com ela na sala de aula. Costumo perguntar aos alunos o que eles acham... se concordam. Depois, já tendo havido espaço para algum debate, puxo do bolso um maço de cigarros; jogo na mesa de um dos meus alunos. “O que está escrito nessa caixinha?”, pergunto. “Esse produto causa câncer”, respondem. Ainda assim, continuamos – continuo – fumando; ave dissonância cognitiva, ave aos primatas e a sua razão. Afinal de contas, que culpa tenho eu?

 

Tenho eu, culpa? Claro que não, leitor; claro que não. Não escolhi nascer brasileiro; não escolhi quando/ou onde nascer; não escolhi minha família, meu nome, meu sexo. Passando por um processo de socialização (totalmente fora de qualquer controle, uma vez que a coisa existe muito antes de mim ou dos meus pais e avós), aprendi a comer (e o que/ e em quais horários comer), aprendi a falar, aprendi as estruturas ocidentais do pensar, aprendi a rezar, aprendi a defecar (o quando e o onde, inclusive), aprendi a dormir; de modo que a socialização “meteu suas mãos” até em minha entranhas a fim de ensinar o mínimo para viver em sociedade. Quanto a isso, não tive culpa e, tampouco, escolha. Nasci porque nasci; falo português em razão do processo de colonização e vivo no Brasil (e não em Pindorama), pelo mesmo motivo. O que sempre me faz pensar: quando é que a chave vira? Em outros termos, quando é que escovar os dentes – naturalmente é só um exemplo, querido leitor −, passou a ser uma escolha própria? Deixando de ser algo “imposto” por aquilo que me foi legado? Quando foi que passei a mandar em alguma coisa nessa porra aqui?

 

Hegemonia cultural é ruim... só se for contra a minha corrente? Ora, não estou falando de correntes ideológicas e/ou políticas; gosto mesmo é de passado e de gente morta. O problema é pensar que a “sua razão” é a única epistemologia que tem/ou está com a razão; pensar no modo ocidental de conceber elucidações como sendo o único razoável para explicar o mundo. Enxergar em qualquer que seja o hábito de outra cultura algo absurdo, degradante, desumano. Cometer infanticídio? ABSURDO! Escravizar outros seres humanos (pautado em ciência, inclusive), nem tanto assim. Ah, deixa disso... – você pensará, leitor −, afinal, escravidão é “passado” (com milhões de aspas, leitor. Temos aí um passado que não passa nem ferrando) e o infanticídio de algumas culturas, por outro lado, não o é. Tudo bem, meu caro Cartesiano, mas deixe-me perguntar: quantos indígenas precisam trancar suas portas antes de dormir? Quantos espancam/assassinam suas esposas? Quantos brigam no trânsito? Quantos têm comportamentos irracionais/prejudiciais depois de doses e doses de cauim? Quantos colocam a vida em risco – a dos filhos, inclusive −, dentro da porcaria de um automóvel só porque alguém os fechou num cruzamento? Quantos deles estão preocupados em demostrar o tamanho dos seus respectivos pintos a indígenas alheios? Qual é a linha que divide o racional do irracional? O “civilizado” do “selvagem”? Ave, ocidente!

 

Vamos nos permitir uma rápida retrospectiva... através dela, observaremos alguns dos enormes avanços alavancados pelo predomínio do pensamento ocidental: descobertas sem par no que diz respeito à medicina e aos processos básicos de higiene (o último, aprendemos com os árabes); benesses eletrônicas que facilitam a vida cotidiana e o bem-estar social; tecnologias que encurtam as distâncias, bem como facilitam os transportes; verdadeiras revoluções agrícolas que resolveram a questão da fome no mundo – mas nem tanto −. Sem falar nas maravilhas das estruturas de governo. Paradoxalmente, tudo isso parece produzir cada vez mais angústia: sociedade do cansaço, sentimentos de deslocamento, adoecimento psíquico; ápice da depressão. Se fosse só isso, estaria tudo bem. Afinal, vovô Freud (também europeu e também branco... ao menos esse não nasceu rico, pô), já nos ensinou que a felicidade não faz parte dos planos da criação. Certo, até o presente momento, para onde foi que o pensamento ocidental levou a humanidade (já vimos que não produziu boas quantidades de felicidade; tá mais para o contrário). Então, para onde?  

[[(...) Mas, paradoxalmente, na mesma época em que o nosso mundo retrocedia um milênio no aspecto moral, vi a mesma humanidade elevar-se a feitos nunca antes imaginados no campo da técnica e do intelecto, ultrapassando em um piscar de olhos tudo o que foi produzido em milhões de anos: a conquista do éter pelo avião, a transmissão da palavra humana no mesmo segundo através do globo terrestre e com isso o triunfo sobre o espaço, a fissão do átomo, a vitória sobre as doenças mais traiçoeiras, possibilitando quase diariamente o que ainda ontem era impossível. Nunca, até a presente hora, a humanidade como um todo se comportou de maneira mais diabólica, e nunca produziu de forma tão divina.]]      

Autobiografia: o mundo de ontem; Stefan Zweig   

 

Continuemos: no século XIX, foi o modo de pensar ocidental o que formulou a História como sendo teleológica; uma linha que, invariavelmente, caminha em direção ao progresso; cujo fim é o progresso da humanidade como um todo. Naturalmente que algumas nações estavam mais adiante na tal linha (coisa de positivista // pegou tanto que ainda figura em nossa bandeira). Resumindo a coisa, a consequência dessa ideia genial – mas nem tanto −, foi a justificativa que tornou possível a Estados europeus – muito mais evoluídos (não preciso das aspas, certo, leitor? Ora, no meu companheiro de blog eu confio, o problema são os outros... sei lá se as pessoas ainda compreendem ironias) −, legar a países menos desenvolvidos todos os privilégios das novas tecnologias. Para tanto – tal como a um Tarzan −, o homem branco europeu precisou sustentar o fardo, suportar a dor de se afastar de seus entes queridos a fim de cruzar oceanos e atingir terras desconhecidas para legar a pobres selvagens as maravilhas produzidas pela razão ocidental.

 

Durante o processo, a mesma Europa produzia maiores inovações, sustentava-se, enriquecia. E África? Bem, sustentava o desenvolvimento europeu, “dava” a eles a riqueza de que precisavam – já que, depois da pólvora, África não conseguiu mais botar esses europeus fedorentos para correr −. Nessa lógica, homens fedorentos – porém racionais e engomados −, decidiram quem morria e quem vivia naquele continente [procurar por: Necropolítica; Achille Mbembe. Finalmente um Camaronês, e preto]; dividiram-no ao sabor de suas conveniências; tudo, claro, em nome do progresso (o herói branco a salvar os povos de sua selvageria; e toma Tarzan neles). É coisa a razão; e ave ocidente. Já no século XX, o método científico atinge seu ápice... os parâmetros da arguição científica extrapolam as exatas e ganham, primeiro, as ciências naturais, depois as sociais. Darwin dá sustentação à escravidão, à superioridade ariana, ao Terceiro Reich. A tecnologia das fábricas é aplicada aos Campos de Extermínio e, desde então, mata-se com eficiência industrial (não que os europeus não tivessem tais práticas antes de 1939; é que a partir daí, a coisa deixou de acontecer em África e migrou aos seus próprios quintais. O genocídio produzido pelos Belgas no Congo, isso não importa. Congoleses eram selvagens; europeus são racionais).

OBS: eu adoraria dizer que o Fascismo é cosia do passado... só que...  

xxx

            

 


 


Ultimamente tenho mesmo pensado o quanto a razão ocidental restringe e apequena minha experiência. Se formos segui-la, tudo precisa ser medido, contabilizado e explicitado em termos científicos – tome um remédio e tudo ficará melhor; dopaminas regularizadas −. Ora, sensações não são “científicas” e pensamentos, tampouco, são quantificáveis (até são; mas a que custo? Vovô Freud fala bastante sobre isso no seu Mal-Estar na Civilização).  Experiência – latu sensu −, vai muito além disso.

 

Claro, não digo para desprezar o caminho do pensamento ocidental, longe disso (sou professor ocidental, porra. Até agora toda a minha argumentação está baseada em intelectuais europeus – salvo, Mbembe −); mas é que Sidarta Gautama nasceu bem antes de qualquer Estoico; e, acredite, disse tudo o que eles disseram. Por questões desse tipo, não sei o quanto a razão ocidental é predominante e, no meu caso, trata-se mais de desconhecimento mesmo. Veja bem, passei por toda a graduação e nunca foi me dito nada sobre China, Japão, Ásia – ao menos, nada que não envolvesse a Europa −. E olha que a minha universidade está entre as melhores do país. Então será o pensamento ocidental o desbravador? Ou será que estamos mesmo é acostumados a olhar para nosso próprio umbigo nos procurando pelo mundo?     

 

Exercitar a dialética? Então experimente trocar – ao menos por um momento −, relativismo cultural por ALTERIDADE. O outro é o outro. Não é questão de empatia ou de colocar-se no lugar dele. O outro é o outro: nasceu em outro lugar, aprendeu outras estruturas e bla, bla, bla... O outro é o outro e, por isso mesmo, não sou capaz de compreende-lo totalmente. Faltam-me os “códigos” competentes para decifrar seus pensamentos, sua estrutura de mundo, suas experiências. O que posso fazer – ocidental que sou e disso não tenho culpa −, é uma interpretação das culturas alheias; espécie de “tradução” parca, de dublagem torta (coisa de antropólogo); mas nunca conseguirei enxergar o mundo a partir dos olhos de outrem. Na índia, meu caro Cartesiano, os deuses ainda fazem parte do mundo dos vivos; proliferam diante do cotidiano; estão nas ruas, nas casas; permanecem vivos. Devo, por isso, implementar meus parâmetros de historiador a fim de dizer que eles (Indianos), ainda não fizeram a separação entre o mito e a razão? Ora essa, quem sou eu. Dizendo de maneira lacônica, a História é apenas uma das formas possíveis de lidar com o tempo, com as durações e as sensações subjetivas que ele produz; Clio não é única e, mesmo que não pareça para os ocidentais, Shiva ainda mantém seu poder.  

 

Assim sendo, repito: a História é uma das estruturas explicativas possíveis, mas é só mais uma – nem melhor, nem pior −. Portanto, não deveria – não sou eu quem diz isso – deter o domínio epistemológico. Vá lá, cito aqui mesmo, no correr do texto: [[Se o que existe é não a Razão, e sim tradições de raciocínio; não a História e suas representações na escrita da história, e sim muitos passados re-presentados de muitas formas, então não podemos escrever com qualquer presunção de privilégio epistêmico. (Sanjay Seth; Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva?)]]; vamos dar glória!!!, ao menos termino texto citando alguém que não é europeu – eu acho −.

 

É mais ou menos por aí, deu para acompanhar?

De toda forma, fique tranquilo; só estou tateando e pinçando ideias ao acaso. De que serve concluir, não é mesmo?   

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

CANTO III

 Brutal truth


Evelyn Beatrice Hall (biógrafa de Voltaire) já dizia o mesmo em 1906: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo".

Segue o discurso de Ann Widdecombe na Oxford Union no debate sobre a moção “This house supports no-platforming”. 
A moção acabou rejeitada (ainda bem).
Ou


domingo, 2 de novembro de 2025

CANTO II





Fractais

O título do blog veio de "E eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês". Nada original, concordo...

Nem precisava; afinal, João e Belchior são mais que suficientes (boa desculpa).
A Palo Seco, além da música do Belchior, fora antes o poema do João Cabral de Melo Neto publicado em março de 1959 no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, com ilustrações de Fernando Lemos. Depois disso, o poema seria publicado no livro 'Quaderna', de 1960.

A expressão significa "a capella", "de forma direta, sem rodeios", e esse era o sentido. Mas ao invés do castelhano, optei pelo português do Belchior, dai o 'Canto Torto'.

(...)


Eis que no segundo post do blog meu sobrinho responde intitulando seu texto como 'Canto Um'. E embora eu não tenha passado do Inferno - de Alighieri -, não ascendendo portanto ao Purgatório nem ao Paraíso, a referência fisgou-me (petulância recorrente desse canalha. Não tenho cura).


O Canto Dois é, por conta disso, pautado por cacos, investidas onde Virgílio dá lugar a meu sobrinho. Um adendo, porém: aqui a inscrição do portal se faz diferente:
"Contais com toda a esperança, vós que entrais!"; afinal, trata-se de shed some light no impensado, e prefiro mesmo nunca ter que atravessar um Aqueronte. 
A ver...

(...)

Não sei se estimulado pelo estudo da História Contrafactual, recebi outro dia críticas à minha ocidentalização cultural. Se aceitarmos Gramsci (um crítico da ocidentalização, ainda que mais econômica e socialmente) e seu conceito de hegemonia cultural, que culpa tenho eu? Tenho eu culpa??? Mas nem gosto tanto de Gramsci, cuja teoria centrou-se em Maquiavel e pariu um manual para os novos príncipes (ou príncipes modernos), aos quais, no fim, só interessava o poder.


E ai a contradição: a hegemonia cultural é ruim... só se for contra a minha corrente (não é à toa que sempre preferi a matemática, a física, onde essa relatividade não existe... só a de Einstein).

Pois bem: universalismo ou relativismo cultural? Em se tratando de determinados valores, como por exemplo a valorização absoluta da vida individual, especialmente a de um ser indefeso como a de um recém-nascido, ave ocidente! Não elaboro o porquê de minha opinião - confesso que cega -, talvez por ignorância ou simplesmente por empatia radical. Tenho filhos.

Nunca fui a favor da morte (pelo Estado. individualmente, acho até possível em algumas situações extremas... sou humano, after all), quanto mais dar trela ao relativismo cultural para assimilar extermínio lastreado por crenças cosmológicas ou rituais, ou ainda por fatores ecológicos ou de sobrevivência (falta de recursos, por exemplo). Até por fatores de sobrevivência, que ao fim carregariam algum racionalismo pragmático justificando a decisão, a morte remete-me mais a algo como 'A Escolha de Sofia', de Styron. Ainda que pragmaticamente correta, como conviver com a decisão e consigo mesmo depois? Não sei... e nem quero saber.

Fato é que não vejo a ocidentalização de forma tão pejorativa. Nem culpado me sinto, já que o legado do pensamento crítico e da razão também foram (principalmente) pavimentados por luminares da Grécia antiga, tanto ou mais que da Índia, China ou Islã. Ter ou não essa visão eurocêntrica não me torna obtuso ou surdo aos legados não ocidentais. A crítica, as vezes ácida e ferina, a mim soa mais como um cacoete/ranço acadêmico e marcação de posição, para dividir os comuns dos diferentes. E eu... sou comezinho.
Mas não importa... acho mesmo que qualquer chacoalhão serve pra questionar conceitos empoeirados que talvez escondam uma verdade diametralmente diferente... ou não. Mas já valeriam nem que apenas para fustigar o pensamento e sou grato por isso. Mas quero explicação... é o mínimo.

(...)


A descoberta de si mesmo, quae sera tamen, pode fazer aflorar mágoas refratárias que como numa criança, talvez resultem em pirraças, revoltas. Digerir o passado sob a luz da compreensão auditada por anos de experiência e estudo depois dos fatos, pode mesmo custar reações adversas e às vezes indesejadas. Esse parece-me o custo da maturidade; felizmente um processo, do qual, acredito, sempre podemos sair bem, ainda que chamuscados.
Rancores, ira, incompreensão do perdão, que minem aqui e ali como o pus das infecções emocionais de anos, cujas respostas ainda não existiam. Conjecturo que a fuga das sombras até cause a compulsão por lenitivos que se momentaneamente anestesiam, revelam-se depois apenas como cosméticos entorpecentes da dor. Continua, todavia, imperativo entender a causa, digeri-la sob a luz das moiras, do acaso, das escolhas ou do que for, caso queira-se mesmo evitar a loucura ou mitigar a depressão. Não importa a opção, forçoso continuar andando, até o fim.

A realidade, ainda que insípida e cruel com sua falta de poesia ou esperança, não pode empurrar-nos irrevogavelmente para um niilismo fatalista e mutuamente exclusivo entre Schopenhauer e Freud.

Prefiro adaptar-me e manter o passo, dar-me o direito ter ter convicções dinâmicas, desde que com alguma coerência, resistindo ao absolutismo a priori. Aprendi que é mais prudente. Caso contrário, ainda assim assumiria a responsabilidade e consequências da escolha, já que parte do 'motivo'  e base tautológica do determinismo de Schopenhauer.
Tal estratégia permite-me o registro da experiência e destrava inferências, algo que nos velhos  assemelhe-se talvez à sabedoria. Sei lá... tenho minhas dúvidas, mas que seja!

Concluindo, penso que o determinismo radical de Skinner, Pierre-Simon Laplace e Espinoza, ou o determinismo de Schopenhauer - ainda que não me apeteçam -, são úteis. Mesmo que Schopenhauer  esteja certo e "o homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer" e ainda que leis universais invisíveis determinem meu caminho, continuo alheio, ou teimoso. Me é conveniente. E como um Peter Sellers em 'Muito Além do Jardim', as vezes "ando sobre águas", negando até leis "físicas". Não como a consumação da transcendência ou santidade, mas apenas como a manifestação máxima de meu alheamento diante da complexidade das leis do universo (olha Ockham ai de novo), ainda que sejam elas que puxem as cordas desse puppet do destino. 

No fim, que destino? Gosto mesmo é de pensar que nessa porra aqui, quem manda sou eu!!! 
A ver...


sábado, 25 de outubro de 2025

CANTO I


Ofício para a Lucidez  

 

Pois bem, faz algum tempo que percebi; e quando dei por mim, já não havia mais volta... para explicar, tomo a liberdade de acrescentar uma citação – minha mesmo −, (haja petulância intelectual):


[[Tal como Jean-Baptiste Clamence em sua “Queda”, eu também ouvi — ou pensei ouvir —, no meio da noite, um grito abafado no escuro. Eu também segui andando. Ao contrário do Francês, no meu caso não houve ponte nem água nem corpo, mas houve o instante de suspensão: de repente etwas denkt an mich; a revelação súbita de quem eu era quando ninguém estava olhando; mas eu sim, eu vi, eu abri os meus olhos. Em outros termos, de uma hora para outra, caiu-me o véu da virtude e, no lugar, vi o rosto inconfundível da canalhice.. O meu pires já tinha derramado.]]  

Notas de um Canalha Lúcido; MESMO;EU

 

 

Sou mesmo um canalha; digo, sou mais um canalha. E não há, nisso, nenhum traço especial − em alguma medida, somos todos −. Por outro lado, será que quero pensar/convencer-me de alguma nota de distinção? Algo que me diferencie do resto? Eu, distinto diante de toda a turba de canalhas? RESPOSTA: Prepotência, arrogância de jovem, ingenuidade, ilusão. Com efeito, sou apenas mais um canalha, e o fato de me declarar lúcido, não carrega consigo um traço singular; nada de excepcional.... Mesmo assim, ainda resta decidir o que fazer com essa pretensa lucidez?  

 

Engraçado... Em um dia − e por algum motivo, que pouco importa agora −, vejo meu tio empenhado em arranjar um globo... representação da Terra. Esse tio também toma o cuidado de fechar as cortinas da sala, escurecendo o ambiente; com poucos movimentos, ele prepara o “sistema”, elabora o que é necessário ao experimento. Com o globo terrestre já posicionado, ele acende uma lanterna em meio à escuridão do cômodo... um feixe de luz ilumina a porção correspondente às Américas. Eu, um menino – quatro, cinco anos talvez −, quedo hipnotizado... sentado no chão, estou paralisado pela voz desse tio, que procura demonstrar como funcionam os movimentos do nosso planeta; qual a origem do dia e da noite; os porquês das estações do ano; as razões que faz com que, no Brasil, seja ainda dia enquanto que, no Japão, já chegou a noite. Coisa simples, trivial... para minha cabeça de criança, fascinante.



Resta saber o que fazer com a pretensa lucidez. Tendo-me percebido canalha, não posso mais, querido leitor, voltar... fingir que nada aconteceu. Seguir como se nada houvesse mudado. Caminho pela vida – perdido nesse planetinha azul −, e durante o caminhar, tropeço. É o acaso quem me faz vacilar; contingencia, vicissitude, fora do meu controle – de qualquer controle −. Passamos pela vida e o mundo passa, feito rolo compressor, por cima de todos nós. Somos, então, marcados; mas também marcamos durante os entrechoques com o mundo. Num final de semana qualquer, experimento um sentimento de espanto, de vislumbre diante do pequeno sistema montado pelo tio... e ele, sem que soubesse, ali – na substância efêmera de um instante −, marcava a minha vida.

 

Será que ele teve essa percepção? É claro que não. O tio não tinha modos de saber que a sua simples “brincadeira”, a fim de sanar a curiosidade infantil de um dos seus sobrinhos, marcaria/mudaria minha vida.

 

Pois bem, já adulto, tornei-me cientista, tornei-me professor e – não nos esqueçamos −, percebi minha canalhice. Foi o experimento do meu tio (o que fez com que eu, agora, contasse que sou cientista)? Claro que não; ao menos não sozinho. Mas foi, (digo), também foi. Ao fim e ao cabo, por alguma razão − a qual não posso compreender −, minha curiosidade aflorou e, por algum motivo, aquilo, para mim, não foi uma simples demonstração. Mexeu, marcou e ainda agora, quase trinta anos depois, posso acessar a cena naquela sala... lúcida e claro, como num filme a perambular junto ao amontoado de memórias em meus porões. E então, sabendo disso, pergunto: por quê? Por que foi o “sistema solar caseiro” o que provocou tal espanto? Por que isso e não qualquer outra coisa? Por que o Titanic e não o Futebol? Por que Hércules, Ícaro e Ulisses, e não Goku, Vegeta e Piccolo? Eu mesmo nem faço ideia. Como comentei, conjuntos intermináveis de coincidências e acasos, divergências e convergências, todas, fora do meu controle. Como resultado de tudo isso, meu caminho... meu andar errante e torto.

 

Já adulto descobri alguma humanidade nesse tio, sabe como é? Deixe-me explicar melhor: como é natural, ao crescer, notei que ele não sabe tudo/ que não é o detentor das “respostas”! Em outros termos, como quando de repente o véu da virtude caiu para mim, no começo de minha vida adulta a roupa de super-herói também caiu, deixando de adornar as figuras masculinas que, durante a infância, serviam-me de exemplo e de base. Meu pai deixou de ser indestrutível, meu avô perdeu a perfeição, meu tio, tornou-se um náufrago... tão perdido quanto eu... lançado a essa porção de poeira no meio do universo, sem saber para quê, por quem e por quanto tempo − náufragos somos todos; canalhas somos todos −.

 

Porém, não se engane, querido leitor, pois permaneço espantado com aquele tio que mostrou os rudimentos que “comandam” o sistema solar. Continuo − mesmo o tendo descoberto canalha − admirado, hipnotizado por aquilo que ele fala e escreve (só não conte isso a ele; o bicho já tem pinta de filósofo, arrogância de intelectual e mania de pompa... se ficar sabendo disso, tornar-se-á insuportável). Permaneço encantado com o tio e, a partir de agora, não só sinto-me privilegiado por ser da mesma família do cara, mas também por escrever com ele (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. De qualquer forma, não fará mal...

 

Então, o que fazer com a pretensa lucidez? Resposta: seguir em frente, ainda que torto e claudicante. Sempre tropeçando; mas sem pausa e sem pressa. Assim, escreveremos – sobrinho e tio −, com vistas a perscrutar alguma lucidez, algum pensamento, algumas dores e – ora, também há −, sabores que permeiam nosso tempo. Será a empreitada capaz de “marcar” a alguém? Não sei e pouco me importa...

O trem é caminhar; primeiro vivemos e experimentamos... depois escrevemos, fazendo da vida uma oportunidade para preencher o papel em branco. Mal não vai fazer;

E precisamos seguir... até o fim

Até a morte.  


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

CANTO ZERO

Vai que é sua...

Ocorreu-me começar como em Bouvard et Pécuchet (haja petulância intelectual). Mas na falta de alguma herança material, como a de Bouvard no livro, decidi-me apenas por papaguear Flaubert (mal, muito mal, diga-se de passagem) ao invés de mudar-me para o campo e empreender a busca gloriosa e pueril por conhecimento através do estudo e da experiência, tendo a natureza como laboratório. Viajantes do século XXI, a Internet é que será nossa oficina.

Depois disso, surrupiei a definição de meu sobrinho e inventei aqui esse Canto Torto, onde pretendo me afogar nas missivas entre esses dois canalhas lúcidos. Qual dos canalhas sou eu, qual é meu sobrinho, decida você - caso leia, caro sofredor. 

Primeiro aviso: do meu lado, mais interessado, como Flaubert (eita presunção), em satirizar os clichês endêmicos da sociedade brasileira nesse início de século. Se tal intento assumir a forma de pensamentos automáticos, banalidades, e terminar algo como um Sottisier tupiniquim, não temo pela vergonha, era isso mesmo! Mas há chance de lançarmos alguma luz em pontos cinzentos apenas pelo fato de discuti-los, o que já é algo, per se, ampliando a visão de mundo. 

De brinde, ainda escreveremos a duas mãos (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. 

Por fim, não escondo meu prazer em fazer isso junto do meu sobrinho, tão único e louco, e ao mesmo tempo, canalha... ainda que lúcido... como eu. 

Segundo aviso: bon voyage! Au revoir.