domingo, 2 de novembro de 2025

CANTO DOIS





Fractais

O título do blog veio de "E eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês". Nada original, concordo...

Nem precisava; afinal, João e Belchior são mais que suficientes (boa desculpa).
A Palo Seco, além da música do Belchior, fora antes o poema do João Cabral de Melo Neto publicado em março de 1959 no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, com ilustrações de Fernando Lemos. Depois disso, o poema seria publicado no livro 'Quaderna', de 1960.

A expressão significa "a capella", "de forma direta, sem rodeios", e esse era o sentido. Mas ao invés do castelhano, optei pelo português do Belchior, dai o 'Canto Torto'.

(...)


Eis que no segundo post do blog meu sobrinho responde intitulando o texto como 'Canto Um'. E embora eu não tenha passado do Inferno - de Alighieri -, não ascendendo portanto ao Purgatório nem ao Paraíso, a referência fisgou-me (petulância recorrente desse canalha. Não tenho cura).


O Canto Dois é, por conta disso, pautado por cacos, investidas onde Virgílio dá lugar a meu sobrinho. Um adendo, porém: aqui a inscrição do portal se faz diferente:
"Contais com toda a esperança, vós que entrais!"; afinal, trata-se de shed some light no impensado, e prefiro mesmo nunca ter que atravessar um Aqueronte. 
A ver...

(...)

Não sei se estimulado pelo estudo da História Contrafactual, recebi outro dia críticas à minha ocidentalização cultural. Se aceitarmos Gramsci (um crítico da ocidentalização, ainda que mais econômica e socialmente) e seu conceito de hegemonia cultural, que culpa tenho eu? Tenho eu culpa??? Mas nem gosto tanto de Gramsci, cuja teoria centrou-se em Maquiavel e pariu um manual para os novos príncipes (ou príncipes modernos), aos quais, no fim, só interessava o poder.


E ai a contradição: a hegemonia cultural é ruim... só se for contra a minha corrente (não é à toa que sempre preferi a matemática, a física, onde essa relatividade não existe... só a de Einstein).

Pois bem: universalismo ou relativismo cultural? Em se tratando de determinados valores, como por exemplo a valorização absoluta da vida individual, especialmente a de um ser indefeso como a de um recém-nascido, ave ocidente! Não elaboro o porquê de minha opinião - confesso que cega -, talvez por ignorância ou simplesmente por empatia radical. Tenho filhos.

Nunca fui a favor da morte (pelo Estado. individualmente, acho até possível em algumas situações extremas... sou humano, after all), quanto mais dar trela ao relativismo cultural para assimilar extermínio lastreado por crenças cosmológicas ou rituais, ou ainda por fatores ecológicos ou de sobrevivência (falta de recursos, por exemplo). Até por fatores de sobrevivência, que ao fim carregariam algum racionalismo pragmático justificando a decisão, a morte remete-me mais a algo como 'A Escolha de Sofia', de Styron. Ainda que pragmaticamente correta, como conviver com a decisão e consigo mesmo depois? Não sei... e nem quero saber.

Fato é que não vejo a ocidentalização de forma tão pejorativa. Nem culpado me sinto, já que o legado do pensamento crítico e da razão também foram (principalmente) pavimentados por luminares da Grécia antiga, tanto ou mais que da Índia, China ou Islã. Ter ou não essa visão eurocêntrica não me torna obtuso ou surdo aos legados não ocidentais. A crítica, as vezes ácida e ferina, a mim soa mais como um cacoete/ranço acadêmico e marcação de posição, para dividir os comuns dos diferentes. E eu... sou comezinho.
Mas não importa... acho mesmo que qualquer chacoalhão serve pra questionar conceitos empoeirados que talvez escondam uma verdade diametralmente diferente... ou não. Mas já valeriam nem que apenas para fustigar o pensamento e sou grato por isso. Mas quero explicação... é o mínimo.

(...)


A descoberta de si mesmo, quae sera tamen, pode fazer aflorar mágoas refratárias que como numa criança, talvez resultem em pirraças, revoltas. Digerir o passado sob a luz da compreensão auditada por anos de experiência e estudo depois dos fatos, pode mesmo custar reações adversas e às vezes indesejadas. Esse parece-me o custo da maturidade; felizmente um processo, do qual, acredito, sempre podemos sair bem, ainda que chamuscados.
Rancores, ira, incompreensão do perdão, que minem aqui e ali como o pus das infecções emocionais de anos, cujas respostas ainda não existiam. Conjecturo que a fuga das sombras até cause a compulsão por lenitivos que se momentaneamente anestesiam, revelam-se depois apenas como cosméticos entorpecentes da dor. Continua, todavia, imperativo entender a causa, digeri-la sob a luz das moiras, do acaso, das escolhas ou do que for, caso queira-se mesmo evitar a loucura ou mitigar a depressão. Não importa a opção, forçoso continuar andando, até o fim.

A realidade, ainda que insípida e cruel com sua falta de poesia ou esperança, não pode empurrar-nos irrevogavelmente para um niilismo fatalista e mutuamente exclusivo entre Schopenhauer e Freud.

Prefiro adaptar-me e manter o passo, dar-me o direito ter ter convicções dinâmicas, desde que com alguma coerência, resistindo ao absolutismo a priori. Aprendi que é mais prudente. Caso contrário, ainda assim assumiria a responsabilidade e consequências da escolha, já que parte do 'motivo'  e base tautológica do determinismo de Schopenhauer.
Tal estratégia permite-me o registro da experiência e destrava inferências, algo que nos velhos  assemelhe-se talvez à sabedoria. Sei lá... tenho minhas dúvidas, mas que seja!

Concluindo, penso que o determinismo radical de Skinner, Pierre-Simon Laplace e Espinoza, ou o determinismo de Schopenhauer - ainda que não me apeteçam -, são úteis. Mesmo que Schopenhauer  esteja certo e "o homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer" e ainda que leis universais invisíveis determinem meu caminho, continuo alheio, ou teimoso. Me é conveniente. E como um Peter Sellers em 'Muito Além do Jardim', as vezes "ando sobre águas", negando até leis "físicas". Não como a consumação da transcendência ou santidade, mas apenas como a manifestação máxima de meu alheamento diante da complexidade das leis do universo (olha Ockham ai de novo), ainda que sejam elas que puxem as cordas desse puppet do destino. 

No fim, que destino? Gosto mesmo é de pensar que nessa porra aqui, quem manda sou eu!!! 
A ver...


sábado, 25 de outubro de 2025

CANTO UM


Ofício para a Lucidez  

 

Pois bem, faz algum tempo que percebi; e quando dei por mim, já não havia mais volta... para explicar, tomo a liberdade de acrescentar uma citação – minha mesmo −, (haja petulância intelectual):


[[Tal como Jean-Baptiste Clamence em sua “Queda”, eu também ouvi — ou pensei ouvir —, no meio da noite, um grito abafado no escuro. Eu também segui andando. Ao contrário do Francês, no meu caso não houve ponte nem água nem corpo, mas houve o instante de suspensão: de repente etwas denkt an mich; a revelação súbita de quem eu era quando ninguém estava olhando; mas eu sim, eu vi, eu abri os meus olhos. Em outros termos, de uma hora para outra, caiu-me o véu da virtude e, no lugar, vi o rosto inconfundível da canalhice.. O meu pires já tinha derramado.]]  

Notas de um Canalha Lúcido; MESMO;EU

 

 

Sou mesmo um canalha; digo, sou mais um canalha. E não há, nisso, nenhum traço especial − em alguma medida, somos todos −. Por outro lado, será que quero pensar/convencer-me de alguma nota de distinção? Algo que me diferencie do resto? Eu, distinto diante de toda a turba de canalhas? RESPOSTA: Prepotência, arrogância de jovem, ingenuidade, ilusão. Com efeito, sou apenas mais um canalha, e o fato de me declarar lúcido, não carrega consigo um traço singular; nada de excepcional.... Mesmo assim, ainda resta decidir o que fazer com essa pretensa lucidez?  

 

Engraçado... Em um dia − e por algum motivo, que pouco importa agora −, vejo meu tio empenhado em arranjar um globo... representação da Terra. Esse tio também toma o cuidado de fechar as cortinas da sala, escurecendo o ambiente; com poucos movimentos, ele prepara o “sistema”, elabora o que é necessário ao experimento. Com o globo terrestre já posicionado, ele acende uma lanterna em meio à escuridão do cômodo... um feixe de luz ilumina a porção correspondente às Américas. Eu, um menino – quatro, cinco anos talvez −, quedo hipnotizado... sentado no chão, estou paralisado pela voz desse tio, que procura demonstrar como funcionam os movimentos do nosso planeta; qual a origem do dia e da noite; os porquês das estações do ano; as razões que faz com que, no Brasil, seja ainda dia enquanto que, no Japão, já chegou a noite. Coisa simples, trivial... para minha cabeça de criança, fascinante.



Resta saber o que fazer com a pretensa lucidez. Tendo-me percebido canalha, não posso mais, querido leitor, voltar... fingir que nada aconteceu. Seguir como se nada houvesse mudado. Caminho pela vida – perdido nesse planetinha azul −, e durante o caminhar, tropeço. É o acaso quem me faz vacilar; contingencia, vicissitude, fora do meu controle – de qualquer controle −. Passamos pela vida e o mundo passa, feito rolo compressor, por cima de todos nós. Somos, então, marcados; mas também marcamos durante os entrechoques com o mundo. Num final de semana qualquer, experimento um sentimento de espanto, de vislumbre diante do pequeno sistema montado pelo tio... e ele, sem que soubesse, ali – na substância efêmera de um instante −, marcava a minha vida.

 

Será que ele teve essa percepção? É claro que não. O tio não tinha modos de saber que a sua simples “brincadeira”, a fim de sanar a curiosidade infantil de um dos seus sobrinhos, marcaria/mudaria minha vida.

 

Pois bem, já adulto, tornei-me cientista, tornei-me professor e – não nos esqueçamos −, percebi minha canalhice. Foi o experimento do meu tio (o que fez com que eu, agora, contasse que sou cientista)? Claro que não; ao menos não sozinho. Mas foi, (digo), também foi. Ao fim e ao cabo, por alguma razão − a qual não posso compreender −, minha curiosidade aflorou e, por algum motivo, aquilo, para mim, não foi uma simples demonstração. Mexeu, marcou e ainda agora, quase trinta anos depois, posso acessar a cena naquela sala... lúcida e claro, como num filme a perambular junto ao amontoado de memórias em meus porões. E então, sabendo disso, pergunto: por quê? Por que foi o “sistema solar caseiro” o que provocou tal espanto? Por que isso e não qualquer outra coisa? Por que o Titanic e não o Futebol? Por que Hércules, Ícaro e Ulisses, e não Goku, Vegeta e Piccolo? Eu mesmo nem faço ideia. Como comentei, conjuntos intermináveis de coincidências e acasos, divergências e convergências, todas, fora do meu controle. Como resultado de tudo isso, meu caminho... meu andar errante e torto.

 

Já adulto descobri alguma humanidade nesse tio, sabe como é? Deixe-me explicar melhor: como é natural, ao crescer, notei que ele não sabe tudo/ que não é o detentor das “respostas”! Em outros termos, como quando de repente o véu da virtude caiu para mim, no começo de minha vida adulta a roupa de super-herói também caiu, deixando de adornar as figuras masculinas que, durante a infância, serviam-me de exemplo e de base. Meu pai deixou de ser indestrutível, meu avô perdeu a perfeição, meu tio, tornou-se um náufrago... tão perdido quanto eu... lançado a essa porção de poeira no meio do universo, sem saber para quê, por quem e por quanto tempo − náufragos somos todos; canalhas somos todos −.

 

Porém, não se engane, querido leitor, pois permaneço espantado com aquele tio que mostrou os rudimentos que “comandam” o sistema solar. Continuo − mesmo o tendo descoberto canalha − admirado, hipnotizado por aquilo que ele fala e escreve (só não conte isso a ele; o bicho já tem pinta de filósofo, arrogância de intelectual e mania de pompa... se ficar sabendo disso, tornar-se-á insuportável). Permaneço encantado com o tio e, a partir de agora, não só sinto-me privilegiado por ser da mesma família do cara, mas também por escrever com ele (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. De qualquer forma, não fará mal...

 

Então, o que fazer com a pretensa lucidez? Resposta: seguir em frente, ainda que torto e claudicante. Sempre tropeçando; mas sem pausa e sem pressa. Assim, escreveremos – sobrinho e tio −, com vistas a perscrutar alguma lucidez, algum pensamento, algumas dores e – ora, também há −, sabores que permeiam nosso tempo. Será a empreitada capaz de “marcar” a alguém? Não sei e pouco me importa...

O trem é caminhar; primeiro vivemos e experimentamos... depois escrevemos, fazendo da vida uma oportunidade para preencher o papel em branco. Mal não vai fazer;

E precisamos seguir... até o fim

Até a morte.  


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Vai que é sua...

Ocorreu-me começar como em Bouvard et Pécuchet (haja petulância intelectual). Mas na falta de alguma herança material, como a de Bouvard no livro, decidi-me apenas por papaguear Flaubert (mal, muito mal, diga-se de passagem) ao invés de mudar-me para o campo e empreender a busca gloriosa e pueril por conhecimento através do estudo e da experiência, tendo a natureza como laboratório. Viajantes do século XXI, a Internet é que será nossa oficina.

Depois disso, surrupiei a definição de meu sobrinho e inventei aqui esse Canto Torto, onde pretendo me afogar nas missivas entre esses dois canalhas lúcidos. Qual dos canalhas sou eu, qual é meu sobrinho, decida você - caso leia, caro sofredor. 

Primeiro aviso: do meu lado, mais interessado, como Flaubert (eita presunção), em satirizar os clichês endêmicos da sociedade brasileira nesse início de século. Se tal intento assumir a forma de pensamentos automáticos, banalidades, e terminar algo como um Sottisier tupiniquim, não temo pela vergonha, era isso mesmo! Mas há chance de lançarmos alguma luz em pontos cinzentos apenas pelo fato de discuti-los, o que já é algo, per se, ampliando a visão de mundo. 

De brinde, ainda escreveremos a duas mãos (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. 

Por fim, não escondo meu prazer em fazer isso junto do meu sobrinho, tão único e louco, e ao mesmo tempo, canalha... ainda que lúcido... como eu. 

Segundo aviso: bon voyage! Au revoir.