CANTO IV
Estarei com Razão?
Eita
cantilena torta, canto engasgado, estrada atravessada... Eis-me novamente por
aqui e, para variar, totalmente torto. Bom, de médico e de torto, todo mundo
tem um pouco, não é assim? Não sei você, mas no que me diz respeito, tenho
andando mesmo claudicante − é a vida e os seus (des)caminhos −. E você
perguntará: há problema na claudicância? Respondo: não para mim..., no
entanto, para lógica da produção, dos prazos, dos trabalhos e das
responsabilidades da vida adulta, há sim! No contexto do homo faber, não
combinam – e tampouco comportam – andanças claudicantes. Quer dizer, no regime
do tempo da produção, pouco há espaço para andaduras “sem rumo”, para o flanar
sem destino prévio, para o pensar por pensar... sem que, com isso, chegue-se a
qualquer que seja a conclusão (pensar por quê? Melhor agir, mais adequado fazer.
Pensamento por ele mesmo, não vale muita coisa). No regime da produção,
portanto, o que é forçoso são as respostas; para além destas, urgem as
decisões, são prementes os caminhos firmes e deliberados. Mas o que é que eu tenho
com isso? Ora, que se dane! A vida é minha e quem manda nessa porra aqui,
sou eu! Faço com o meu tempo finito o que melhor me aprouver... no fim das
contas, já nasci torto.
Já
tendo dito o não dito (atentado para o estado de instabilidade emocional deste
que agora rabisca), interpelemos a questão da razão; especialmente, da razão
ocidental. Para tanto, começaremos com um intelectual de vulto. Branco (sim),
porém, ao menos, não é europeu (Americano; Ave, american way of life):
[[O automóvel nas mãos do homem comum já está
beirando as margens da extinção. Na verdade, o homem comum é uma criatura de
hábitos estranhos e peculiares. Tomemos o senhor Walker como exemplo. O senhor
Walker mora num bairro tranquilo, de pessoas decentes. Ele é o típico homem
comum, considerado um bom cidadão e de inteligência razoável. É um homem
gentil, amável, pontual e honesto. O Sr. Walker não machucaria uma mosca,
tampouco uma formiga. Ele acredita em: viva e deixe viver. O Sr. Walker
possui um automóvel e se considera um bom motorista. Mas, quando ele pega no
volante, acontece um fenômeno estranho: o Sr. Walker se deixa levar pela forte
sensação de poder. Sua personalidade muda completamente, e de repente, ele se
transforma em um mostro incontrolável, um motorista diabólico. O Sr. Walker é
agora o Sr. Wheeler, o motorista.]]
− Trecho inicial da animação: MOTOR MANIA; 1950; Jack
Kinney; Walt Disney Productions.
xxx
Direto
ao ponto e sem rodeios? Pois bem, coisa positiva do blog: sua estrutura força
uma sintetização na minha escrita. Faz com que, de certo modo, eu seja impelido
a largar o hábito acadêmico de tudo referenciar; de tudo sustentar com base em
algum argumento de autoridade (geralmente de um homem, geralmente europeu,
geralmente, branco). A despeito disso, não posso deixar de todo o cacoete. Como
comentado no meu canto passado, sou jovem e burro, sendo necessário
buscar substância em pensadores alheios. Por isso, fiquemos com Jack Kinney e
sua animação com o personagem Pateta (busque-a, se quiser. Salvo engano, está
no streaming da Disney).
No
meu ponto de vista, Kinney demostrou de modo magistral o alcance da pretensa razão.
Em outras palavras, arrotamos arrogância (eu, inclusive. Ora, sou
professor de algo estritamente europeu) a fim de dizer das maravilhas que o
pensamento racional foi capaz de constituir (um automóvel, por exemplo); mas
basta entrar em um carro para ver o quanto dura essa razão; o quanto são
racionais os tais Primatas Falantes. Cheios de si (europeus então, nem
me fale), gritam aos quatro cantos sua “evolução”, seu conhecimento. Tamanha a
primazia e tanto ardor a favor da história do pensamento ocidental... e a coisa
não se sustenta a um bater de portas de um automóvel. Com efeito, se não basta
o americano, vamos então ao cerne europeu; País de Gales. Eu, jovem e burro;
ele, CONDE, NOBRE, FILÓSOFO, RICO (e branco, sim). Fala para mim, vamos, Conde.
Diz o que eu não sou capaz; elabora o que a minha inteligência (ainda) não
permite, pega sua experiência e ensine-me, Conde Russell:
[[“O
homem é um animal racional — ou pelo menos foi o que me disseram. Ao longo de
uma vida longa, procurei diligentemente por evidências que confirmassem essa
afirmação, mas, até agora, não tive a sorte de encontrar nenhuma.”]]
Eu
e meu gosto por citar europeus brancos. Lembro-me de um professor (genial e
também branco), hoje responsável pela disciplina de História da África na
Universidade Federal Fluminense, chamando-me de Intelectual Colonizado
(saudades, cara; Ave Prof. Malacco). O mesmo professor costumava repetir
que o mal do europeu é viver se procurando pelo mundo (não vou alongar
aqui... quem sabe, essa coisa de “se procurar pelo mundo” fique para um próximo
canto). Agora, com relação a tal frase do querido Aristóteles: O
HOMEM É UM ANIMAL RACIONAL, saibam: adoro trabalhar com ela na sala de
aula. Costumo perguntar aos alunos o que eles acham... se concordam. Depois, já
tendo havido espaço para algum debate, puxo do bolso um maço de cigarros; jogo
na mesa de um dos meus alunos. “O que está escrito nessa caixinha?”,
pergunto. “Esse produto causa câncer”, respondem. Ainda assim,
continuamos – continuo – fumando; ave dissonância cognitiva, ave
aos primatas e a sua razão. Afinal de contas, que culpa tenho eu?
Tenho
eu, culpa? Claro que não, leitor; claro que não. Não escolhi nascer brasileiro;
não escolhi quando/ou onde nascer; não escolhi minha família, meu nome, meu
sexo. Passando por um processo de socialização (totalmente fora de qualquer
controle, uma vez que a coisa existe muito antes de mim ou dos meus pais e
avós), aprendi a comer (e o que/ e em quais horários comer), aprendi a falar, aprendi
as estruturas ocidentais do pensar, aprendi a rezar, aprendi a defecar (o
quando e o onde, inclusive), aprendi a dormir; de modo que a socialização “meteu
suas mãos” até em minha entranhas a fim de ensinar o mínimo para viver em
sociedade. Quanto a isso, não tive culpa e, tampouco, escolha. Nasci porque
nasci; falo português em razão do processo de colonização e vivo no Brasil (e
não em Pindorama), pelo mesmo motivo. O que sempre me faz pensar: quando é que
a chave vira? Em outros termos, quando é que escovar os dentes – naturalmente é
só um exemplo, querido leitor −, passou a ser uma escolha própria? Deixando de
ser algo “imposto” por aquilo que me foi legado? Quando foi que passei a mandar
em alguma coisa nessa porra aqui?
Hegemonia
cultural é ruim... só se for contra a minha corrente? Ora, não estou falando de
correntes ideológicas e/ou políticas; gosto mesmo é de passado e de gente
morta. O problema é pensar que a “sua razão” é a única epistemologia que tem/ou
está com a razão; pensar no modo ocidental de conceber elucidações como sendo o
único razoável para explicar o mundo. Enxergar em qualquer que seja o hábito de
outra cultura algo absurdo, degradante, desumano. Cometer infanticídio? ABSURDO!
Escravizar outros seres humanos (pautado em ciência, inclusive), nem tanto assim.
Ah, deixa disso... – você pensará, leitor −, afinal, escravidão é “passado”
(com milhões de aspas, leitor. Temos aí um passado que não passa nem ferrando)
e o infanticídio de algumas culturas, por outro lado, não o é. Tudo bem, meu
caro Cartesiano, mas deixe-me perguntar: quantos indígenas precisam trancar
suas portas antes de dormir? Quantos espancam/assassinam suas esposas? Quantos
brigam no trânsito? Quantos têm comportamentos irracionais/prejudiciais depois
de doses e doses de cauim? Quantos colocam a vida em risco – a dos
filhos, inclusive −, dentro da porcaria de um automóvel só porque alguém os
fechou num cruzamento? Quantos deles estão preocupados em demostrar o tamanho
dos seus respectivos pintos a indígenas alheios? Qual é a linha que divide o racional
do irracional? O “civilizado” do “selvagem”? Ave, ocidente!
Vamos
nos permitir uma rápida retrospectiva... através dela, observaremos alguns dos
enormes avanços alavancados pelo predomínio do pensamento ocidental:
descobertas sem par no que diz respeito à medicina e aos processos básicos de
higiene (o último, aprendemos com os árabes); benesses eletrônicas que
facilitam a vida cotidiana e o bem-estar social; tecnologias que encurtam as
distâncias, bem como facilitam os transportes; verdadeiras revoluções agrícolas
que resolveram a questão da fome no mundo – mas nem tanto −. Sem falar nas maravilhas
das estruturas de governo. Paradoxalmente, tudo isso parece produzir cada vez
mais angústia: sociedade do cansaço, sentimentos de deslocamento, adoecimento psíquico;
ápice da depressão. Se fosse só isso, estaria tudo bem. Afinal, vovô Freud
(também europeu e também branco... ao menos esse não nasceu rico, pô), já nos
ensinou que a felicidade não faz parte dos planos da criação. Certo, até o
presente momento, para onde foi que o pensamento ocidental levou a humanidade (já
vimos que não produziu boas quantidades de felicidade; tá mais para o
contrário). Então, para onde?
[[(...) Mas, paradoxalmente, na mesma época em que
o nosso mundo retrocedia um milênio no aspecto moral, vi a mesma humanidade
elevar-se a feitos nunca antes imaginados no campo da técnica e do intelecto,
ultrapassando em um piscar de olhos tudo o que foi produzido em milhões de
anos: a conquista do éter pelo avião, a transmissão da palavra humana no mesmo
segundo através do globo terrestre e com isso o triunfo sobre o espaço, a
fissão do átomo, a vitória sobre as doenças mais traiçoeiras, possibilitando
quase diariamente o que ainda ontem era impossível. Nunca, até a presente hora,
a humanidade como um todo se comportou de maneira mais diabólica, e nunca
produziu de forma tão divina.]]
− Autobiografia: o mundo de ontem; Stefan Zweig
Continuemos:
no século XIX, foi o modo de pensar ocidental o que formulou a História como
sendo teleológica; uma linha que, invariavelmente, caminha em direção ao progresso;
cujo fim é o progresso da humanidade como um todo. Naturalmente que algumas
nações estavam mais adiante na tal linha (coisa de positivista // pegou tanto
que ainda figura em nossa bandeira). Resumindo a coisa, a consequência dessa
ideia genial – mas nem tanto −, foi a justificativa que tornou possível a Estados
europeus – muito mais evoluídos (não preciso das aspas, certo, leitor? Ora, no
meu companheiro de blog eu confio, o problema são os outros... sei lá se as
pessoas ainda compreendem ironias) −, legar a países menos desenvolvidos todos
os privilégios das novas tecnologias. Para tanto – tal como a um Tarzan −, o
homem branco europeu precisou sustentar o fardo, suportar a dor de se afastar
de seus entes queridos a fim de cruzar oceanos e atingir terras desconhecidas para
legar a pobres selvagens as maravilhas produzidas pela razão ocidental.
Durante
o processo, a mesma Europa produzia maiores inovações, sustentava-se, enriquecia.
E África? Bem, sustentava o desenvolvimento europeu, “dava” a eles a riqueza de
que precisavam – já que, depois da pólvora, África não conseguiu mais botar
esses europeus fedorentos para correr −. Nessa lógica, homens fedorentos –
porém racionais e engomados −, decidiram quem morria e quem vivia naquele
continente [procurar por: Necropolítica; Achille Mbembe. Finalmente um Camaronês,
e preto]; dividiram-no ao sabor de suas conveniências; tudo, claro, em nome do
progresso (o herói branco a salvar os povos de sua selvageria; e toma Tarzan
neles). É coisa a razão; e ave ocidente. Já no século XX, o método
científico atinge seu ápice... os parâmetros da arguição científica extrapolam
as exatas e ganham, primeiro, as ciências naturais, depois as sociais. Darwin
dá sustentação à escravidão, à superioridade ariana, ao Terceiro Reich. A tecnologia
das fábricas é aplicada aos Campos de Extermínio e, desde então, mata-se com
eficiência industrial (não que os europeus não tivessem tais práticas antes de
1939; é que a partir daí, a coisa deixou de acontecer em África e migrou aos seus
próprios quintais. O genocídio produzido pelos Belgas no Congo, isso não
importa. Congoleses eram selvagens; europeus são racionais).
OBS:
eu adoraria dizer que o Fascismo é cosia do passado... só que...
xxx
Ultimamente
tenho mesmo pensado o quanto a razão ocidental restringe e apequena minha
experiência. Se formos segui-la, tudo precisa ser medido, contabilizado e
explicitado em termos científicos – tome um remédio e tudo ficará melhor;
dopaminas regularizadas −. Ora, sensações não são “científicas” e pensamentos,
tampouco, são quantificáveis (até são; mas a que custo? Vovô Freud fala
bastante sobre isso no seu Mal-Estar na Civilização). Experiência – latu sensu −, vai muito
além disso.
Claro,
não digo para desprezar o caminho do pensamento ocidental, longe disso (sou
professor ocidental, porra. Até agora toda a minha argumentação está baseada em
intelectuais europeus – salvo, Mbembe −); mas é que Sidarta Gautama nasceu bem antes
de qualquer Estoico; e, acredite, disse tudo o que eles disseram. Por questões desse
tipo, não sei o quanto a razão ocidental é predominante e, no meu caso,
trata-se mais de desconhecimento mesmo. Veja bem, passei por toda a graduação e
nunca foi me dito nada sobre China, Japão, Ásia – ao menos, nada que não envolvesse
a Europa −. E olha que a minha universidade está entre as melhores do país.
Então será o pensamento ocidental o desbravador? Ou será que estamos mesmo é acostumados
a olhar para nosso próprio umbigo nos procurando pelo mundo?
Exercitar
a dialética? Então experimente trocar – ao menos por um momento −, relativismo
cultural por ALTERIDADE. O outro é o outro. Não é questão de empatia ou de colocar-se
no lugar dele. O outro é o outro: nasceu em outro lugar, aprendeu outras
estruturas e bla, bla, bla... O outro é o outro e, por isso mesmo, não sou
capaz de compreende-lo totalmente. Faltam-me os “códigos” competentes para
decifrar seus pensamentos, sua estrutura de mundo, suas experiências. O que
posso fazer – ocidental que sou e disso não tenho culpa −, é uma interpretação
das culturas alheias; espécie de “tradução” parca, de dublagem torta (coisa de
antropólogo); mas nunca conseguirei enxergar o mundo a partir dos olhos de
outrem. Na índia, meu caro Cartesiano, os deuses ainda fazem parte do mundo dos
vivos; proliferam diante do cotidiano; estão nas ruas, nas casas; permanecem
vivos. Devo, por isso, implementar meus parâmetros de historiador a fim de
dizer que eles (Indianos), ainda não fizeram a separação entre o mito e a razão?
Ora essa, quem sou eu. Dizendo de maneira lacônica, a História é apenas uma das
formas possíveis de lidar com o tempo, com as durações e as sensações subjetivas
que ele produz; Clio não é única e, mesmo que não pareça para os ocidentais,
Shiva ainda mantém seu poder.
Assim
sendo, repito: a História é uma das estruturas explicativas possíveis, mas é só
mais uma – nem melhor, nem pior −. Portanto, não deveria – não sou eu quem diz
isso – deter o domínio epistemológico. Vá lá, cito aqui mesmo, no correr do texto:
[[Se o que existe é não a Razão, e sim tradições de raciocínio; não a História
e suas representações na escrita da história, e sim muitos passados
re-presentados de muitas formas, então não podemos escrever com qualquer
presunção de privilégio epistêmico. (Sanjay Seth; Razão ou Raciocínio? Clio ou
Shiva?)]]; vamos dar glória!!!, ao menos termino texto citando alguém que não é
europeu – eu acho −.
É
mais ou menos por aí, deu para acompanhar?
De
toda forma, fique tranquilo; só estou tateando e pinçando ideias ao acaso. De
que serve concluir, não é mesmo?


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