sábado, 25 de outubro de 2025

CANTO UM


Ofício para a Lucidez  

 

Pois bem, faz algum tempo que percebi; e quando dei por mim, já não havia mais volta... para explicar, tomo a liberdade de acrescentar uma citação – minha mesmo −, (haja petulância intelectual):


[[Tal como Jean-Baptiste Clamence em sua “Queda”, eu também ouvi — ou pensei ouvir —, no meio da noite, um grito abafado no escuro. Eu também segui andando. Ao contrário do Francês, no meu caso não houve ponte nem água nem corpo, mas houve o instante de suspensão: de repente etwas denkt an mich; a revelação súbita de quem eu era quando ninguém estava olhando; mas eu sim, eu vi, eu abri os meus olhos. Em outros termos, de uma hora para outra, caiu-me o véu da virtude e, no lugar, vi o rosto inconfundível da canalhice.. O meu pires já tinha derramado.]]  

Notas de um Canalha Lúcido; MESMO;EU

 

 

Sou mesmo um canalha; digo, sou mais um canalha. E não há, nisso, nenhum traço especial − em alguma medida, somos todos −. Por outro lado, será que quero pensar/convencer-me de alguma nota de distinção? Algo que me diferencie do resto? Eu, distinto diante de toda a turba de canalhas? RESPOSTA: Prepotência, arrogância de jovem, ingenuidade, ilusão. Com efeito, sou apenas mais um canalha, e o fato de me declarar lúcido, não carrega consigo um traço singular; nada de excepcional.... Mesmo assim, ainda resta decidir o que fazer com essa pretensa lucidez?  

 

Engraçado... Em um dia − e por algum motivo, que pouco importa agora −, vejo meu tio empenhado em arranjar um globo... representação da Terra. Esse tio também toma o cuidado de fechar as cortinas da sala, escurecendo o ambiente; com poucos movimentos, ele prepara o “sistema”, elabora o que é necessário ao experimento. Com o globo terrestre já posicionado, ele acende uma lanterna em meio à escuridão do cômodo... um feixe de luz ilumina a porção correspondente às Américas. Eu, um menino – quatro, cinco anos talvez −, quedo hipnotizado... sentado no chão, estou paralisado pela voz desse tio, que procura demonstrar como funcionam os movimentos do nosso planeta; qual a origem do dia e da noite; os porquês das estações do ano; as razões que faz com que, no Brasil, seja ainda dia enquanto que, no Japão, já chegou a noite. Coisa simples, trivial... para minha cabeça de criança, fascinante.



Resta saber o que fazer com a pretensa lucidez. Tendo-me percebido canalha, não posso mais, querido leitor, voltar... fingir que nada aconteceu. Seguir como se nada houvesse mudado. Caminho pela vida – perdido nesse planetinha azul −, e durante o caminhar, tropeço. É o acaso quem me faz vacilar; contingencia, vicissitude, fora do meu controle – de qualquer controle −. Passamos pela vida e o mundo passa, feito rolo compressor, por cima de todos nós. Somos, então, marcados; mas também marcamos durante os entrechoques com o mundo. Num final de semana qualquer, experimento um sentimento de espanto, de vislumbre diante do pequeno sistema montado pelo tio... e ele, sem que soubesse, ali – na substância efêmera de um instante −, marcava a minha vida.

 

Será que ele teve essa percepção? É claro que não. O tio não tinha modos de saber que a sua simples “brincadeira”, a fim de sanar a curiosidade infantil de um dos seus sobrinhos, marcaria/mudaria minha vida.

 

Pois bem, já adulto, tornei-me cientista, tornei-me professor e – não nos esqueçamos −, percebi minha canalhice. Foi o experimento do meu tio (o que fez com que eu, agora, contasse que sou cientista)? Claro que não; ao menos não sozinho. Mas foi, (digo), também foi. Ao fim e ao cabo, por alguma razão − a qual não posso compreender −, minha curiosidade aflorou e, por algum motivo, aquilo, para mim, não foi uma simples demonstração. Mexeu, marcou e ainda agora, quase trinta anos depois, posso acessar a cena naquela sala... lúcida e claro, como num filme a perambular junto ao amontoado de memórias em meus porões. E então, sabendo disso, pergunto: por quê? Por que foi o “sistema solar caseiro” o que provocou tal espanto? Por que isso e não qualquer outra coisa? Por que o Titanic e não o Futebol? Por que Hércules, Ícaro e Ulisses, e não Goku, Vegeta e Piccolo? Eu mesmo nem faço ideia. Como comentei, conjuntos intermináveis de coincidências e acasos, divergências e convergências, todas, fora do meu controle. Como resultado de tudo isso, meu caminho... meu andar errante e torto.

 

Já adulto descobri alguma humanidade nesse tio, sabe como é? Deixe-me explicar melhor: como é natural, ao crescer, notei que ele não sabe tudo/ que não é o detentor das “respostas”! Em outros termos, como quando de repente o véu da virtude caiu para mim, no começo de minha vida adulta a roupa de super-herói também caiu, deixando de adornar as figuras masculinas que, durante a infância, serviam-me de exemplo e de base. Meu pai deixou de ser indestrutível, meu avô perdeu a perfeição, meu tio, tornou-se um náufrago... tão perdido quanto eu... lançado a essa porção de poeira no meio do universo, sem saber para quê, por quem e por quanto tempo − náufragos somos todos; canalhas somos todos −.

 

Porém, não se engane, querido leitor, pois permaneço espantado com aquele tio que mostrou os rudimentos que “comandam” o sistema solar. Continuo − mesmo o tendo descoberto canalha − admirado, hipnotizado por aquilo que ele fala e escreve (só não conte isso a ele; o bicho já tem pinta de filósofo, arrogância de intelectual e mania de pompa... se ficar sabendo disso, tornar-se-á insuportável). Permaneço encantado com o tio e, a partir de agora, não só sinto-me privilegiado por ser da mesma família do cara, mas também por escrever com ele (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. De qualquer forma, não fará mal...

 

Então, o que fazer com a pretensa lucidez? Resposta: seguir em frente, ainda que torto e claudicante. Sempre tropeçando; mas sem pausa e sem pressa. Assim, escreveremos – sobrinho e tio −, com vistas a perscrutar alguma lucidez, algum pensamento, algumas dores e – ora, também há −, sabores que permeiam nosso tempo. Será a empreitada capaz de “marcar” a alguém? Não sei e pouco me importa...

O trem é caminhar; primeiro vivemos e experimentamos... depois escrevemos, fazendo da vida uma oportunidade para preencher o papel em branco. Mal não vai fazer;

E precisamos seguir... até o fim

Até a morte.  


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Vai que é sua...

Ocorreu-me começar como em Bouvard et Pécuchet (haja petulância intelectual). Mas na falta de alguma herança material, como a de Bouvard no livro, decidi-me apenas por papaguear Flaubert (mal, muito mal, diga-se de passagem) ao invés de mudar-me para o campo e empreender a busca gloriosa e pueril por conhecimento através do estudo e da experiência, tendo a natureza como laboratório. Viajantes do século XXI, a Internet é que será nossa oficina.

Depois disso, surrupiei a definição de meu sobrinho e inventei aqui esse Canto Torto, onde pretendo me afogar nas missivas entre esses dois canalhas lúcidos. Qual dos canalhas sou eu, qual é meu sobrinho, decida você - caso leia, caro sofredor. 

Primeiro aviso: do meu lado, mais interessado, como Flaubert (eita presunção), em satirizar os clichês endêmicos da sociedade brasileira nesse início de século. Se tal intento assumir a forma de pensamentos automáticos, banalidades, e terminar algo como um Sottisier tupiniquim, não temo pela vergonha, era isso mesmo! Mas há chance de lançarmos alguma luz em pontos cinzentos apenas pelo fato de discuti-los, o que já é algo, per se, ampliando a visão de mundo. 

De brinde, ainda escreveremos a duas mãos (não concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças, contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não premeditada, fomentando a dialética. 

Por fim, não escondo meu prazer em fazer isso junto do meu sobrinho, tão único e louco, e ao mesmo tempo, canalha... ainda que lúcido... como eu. 

Segundo aviso: bon voyage! Au revoir.