Ofício
para a Lucidez  
Pois bem, faz algum tempo que
percebi; e quando dei por mim, já não havia mais volta... para explicar, tomo a
liberdade de acrescentar uma citação – minha mesmo −, (haja petulância
intelectual):
[[Tal
como Jean-Baptiste Clamence em sua “Queda”, eu também ouvi — ou pensei ouvir —,
no meio da noite, um grito abafado no escuro. Eu também segui andando. Ao
contrário do Francês, no meu caso não houve ponte nem água nem corpo, mas houve
o instante de suspensão: de repente etwas denkt an mich; a revelação súbita de
quem eu era quando ninguém estava olhando; mas eu sim, eu vi, eu abri os meus
olhos. Em outros termos, de uma hora para outra, caiu-me o véu da virtude e, no
lugar, vi o rosto inconfundível da canalhice.. O meu pires já tinha derramado.]]  
− Notas de um
Canalha Lúcido; MESMO;EU
Sou
mesmo um canalha; digo, sou mais um canalha. E não há, nisso, nenhum
traço especial − em alguma medida, somos todos −. Por outro lado, será que
quero pensar/convencer-me de alguma nota de distinção? Algo que me diferencie
do resto? Eu, distinto diante de toda a turba de canalhas? RESPOSTA: Prepotência,
arrogância de jovem, ingenuidade, ilusão. Com efeito, sou apenas mais um
canalha, e o fato de me declarar lúcido, não carrega consigo um traço singular;
nada de excepcional.... Mesmo assim, ainda resta decidir o que fazer com essa
pretensa lucidez?  
Engraçado...
Em um dia − e por algum motivo, que pouco importa agora −, vejo meu tio
empenhado em arranjar um globo... representação da Terra. Esse tio também toma
o cuidado de fechar as cortinas da sala, escurecendo o ambiente; com poucos
movimentos, ele prepara o “sistema”, elabora o que é necessário ao experimento.
Com o globo terrestre já posicionado, ele acende uma lanterna em meio à
escuridão do cômodo... um feixe de luz ilumina a porção correspondente às Américas.
Eu, um menino – quatro, cinco anos talvez −, quedo hipnotizado... sentado no
chão, estou paralisado pela voz desse tio, que procura demonstrar como funcionam
os movimentos do nosso planeta; qual a origem do dia e da noite; os porquês das
estações do ano; as razões que faz com que, no Brasil, seja ainda dia enquanto
que, no Japão, já chegou a noite. Coisa simples, trivial... para minha cabeça
de criança, fascinante. 
Será
que ele teve essa percepção? É claro que não. O tio não tinha modos de saber
que a sua simples “brincadeira”, a fim de sanar a curiosidade infantil de um
dos seus sobrinhos, marcaria/mudaria minha vida. 
Pois
bem, já adulto, tornei-me cientista, tornei-me professor e – não nos esqueçamos
−, percebi minha canalhice. Foi o experimento do meu tio (o que fez com que eu,
agora, contasse que sou cientista)? Claro que não; ao menos não sozinho. Mas foi,
(digo), também foi. Ao fim e ao cabo, por alguma razão − a qual não posso
compreender −, minha curiosidade aflorou e, por algum motivo, aquilo, para mim,
não foi uma simples demonstração. Mexeu, marcou e ainda agora, quase trinta
anos depois, posso acessar a cena naquela sala... lúcida e claro, como num
filme a perambular junto ao amontoado de memórias em meus porões. E então,
sabendo disso, pergunto: por quê? Por que foi o “sistema solar caseiro” o que
provocou tal espanto? Por que isso e não qualquer outra coisa? Por que o Titanic
e não o Futebol? Por que Hércules, Ícaro e Ulisses, e não Goku, Vegeta e Piccolo?
Eu mesmo nem faço ideia. Como comentei, conjuntos intermináveis de coincidências
e acasos, divergências e convergências, todas, fora do meu controle. Como
resultado de tudo isso, meu caminho... meu andar errante e torto. 
 
Já
adulto descobri alguma humanidade nesse tio, sabe como é? Deixe-me explicar melhor:
como é natural, ao crescer, notei que ele não sabe tudo/ que não é o detentor
das “respostas”! Em outros termos, como quando de repente o véu da virtude caiu
para mim, no começo de minha vida adulta a roupa de super-herói também caiu, deixando
de adornar as figuras masculinas que, durante a infância, serviam-me de exemplo
e de base. Meu pai deixou de ser indestrutível, meu avô perdeu a perfeição, meu
tio, tornou-se um náufrago... tão perdido quanto eu... lançado a essa porção de
poeira no meio do universo, sem saber para quê, por quem e por quanto tempo − náufragos
somos todos; canalhas somos todos −. 
Porém,
não se engane, querido leitor, pois permaneço espantado com aquele tio que
mostrou os rudimentos que “comandam” o sistema solar. Continuo − mesmo o tendo
descoberto canalha − admirado, hipnotizado por aquilo que ele fala e escreve
(só não conte isso a ele; o bicho já tem pinta de filósofo, arrogância
de intelectual e mania de pompa... se ficar sabendo disso, tornar-se-á insuportável).
Permaneço encantado com o tio e, a partir de agora, não só sinto-me privilegiado
por ser da mesma família do cara, mas também por escrever com ele (não
concomitantemente, não no mesmo texto, claro), sublinhando diferenças,
contraposições, contradições, sob os auspícios de uma maiêutica não
premeditada, fomentando a dialética. De qualquer forma, não fará mal... 
Então,
o que fazer com a pretensa lucidez? Resposta: seguir em frente, ainda que torto
e claudicante. Sempre tropeçando; mas sem pausa e sem pressa. Assim, escreveremos
– sobrinho e tio −, com vistas a perscrutar alguma lucidez, algum pensamento,
algumas dores e – ora, também há −, sabores que permeiam nosso tempo. Será a empreitada
capaz de “marcar” a alguém? Não sei e pouco me importa... 
O
trem é caminhar; primeiro vivemos e experimentamos... depois escrevemos,
fazendo da vida uma oportunidade para preencher o papel em branco. Mal não vai fazer;
E
precisamos seguir... até o fim 
Até
a morte.  

